Numa manhã de abril de 1970, aqueles que passeavam por um parque de Belo Horizonte encontraram trouxas ensanguentadas, carne e ossos em lençóis à beira do rio.
Chamaram a polícia e as 14 trouxas foram recolhidas para perícia. Eram 20 quilos de carne de vaca em putrefação que o artista Artur Barrio espalhou pelo parque como obra de arte, sem assinatura.
Uma imagem desse trabalho está agora na capa de um livro lançado nos Estados Unidos por Claudia Calirman, historiadora brasileira radicada em Nova York, sobre a arte brasileira produzida durante o regime militar, desde o golpe de 1964 até 1985.
“Esse é o trabalho mais visceral desse período”, diz Calirman. “Não sabe se são pessoas ou animais. Tem a coisa dos desaparecidos, dos torturados. É ambíguo, chocante.”
Escrito em inglês e com lançamento no país previsto para agosto, “Brazilian Art Under Dictatorship” tem como ponto de inflexão a instituição do AI-5, em 1968, época de recrudescimento da repressão.
Nesse momento, a obra de Artur Barrio, Antonio Manuel e Cildo Meireles é revista como resposta à censura e ao medo instalado pelo regime.
Embora sejam artistas de peso, a escolha desses três pela autora destoa da bibliografia já produzida sobre o período, que escolheu como heróis os neoconcretos Lygia Clark e Hélio Oiticica, artistas que se exilaram.
“Queria sair do Oiticica e da Lygia Clark. Só se fala deles aqui nos Estados Unidos”, diz Calirman. “Meu foco é em quem ficou. Há muito interesse nos exilados e pouco se fala dos que ficaram no país.”
Ela então centra atenções em atos específicos de Barrio, Manuel e Meireles, começando pelas célebres trouxas ensanguentadas do primeiro.
Antonio Manuel é lembrado pelo momento em que tirou a roupa e desfilou nu pelo Museu de Arte Moderna do Rio quando foi rejeitado pelo Salão da instituição –ele tentara inscrever seu próprio corpo como uma obra de arte.
No caso de Meireles, as garrafas de Coca-Cola e cédulas de dinheiro que fez circular com mensagens políticas são analisados como seus trabalhos mais potentes na época.
Um ponto em comum entre os três seria a tradução de uma linguagem plástica de vanguarda, de trabalhos com o corpo ou inseridos na natureza, ao contexto de exceção então em vigor no Brasil.
BRAZILIAN ART UNDER DICTATORSHIP
AUTOR: Claudia Calirman
EDITORA: Duke University Press
QUANTO: R$ 60 (232 págs.)
(Silas Martí)
Fonte: Folha de São Paulo 24.07.2012